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Como uma pedra que rola…

Cristiana Tejo, 2007

Tudo parece escorrer pelas mãos. Certezas, caminhos. Desterritorialização, reterritorialização, reespacialização, pertencimento. os conceitos que tangem o território, o lugar, são talvez os mais discutidos na contemporaneidade, mesmo que a maior parte da população desconheça-os na teoria. Entretanto, a prática faz milhões de pessoas vivenciarem a diáspora, a migração, a errância, o nomadismo, para uns como flagelo, para outros como oportunidade de negócios transnacionais e de um estilo de vida globalizado. Os novos meios que ampliam a comunicabilidade, a acessibilidade de informações e os deslocamentos proporcionam ranhuras nas noções de perecimento, incitando para ressignificações deste sentimento.

 

A resposta do artista Gaio à condição nomádica e fluida deste tempo é a afetividade. Novamente uma afetividade flexível, plástica, que amplifica e deixa ramificar os vínculos com os entornos bastante variáveis. Na série de fotografias ambulantes, caramujos carregam a planta baixa de uma casa humana em suas conchas. Esses moluscos vagamundos transitam lentamente por caminhos ermos fazendo de qualquer paragem seu lar. É como se transportassem seu rol de afetos, a familiaridade por onde passam. Uma análoga, obviamente, a essa variante de afeição desenraizada e desmaterializada a que o nomadismo contemporâneo nos impele. Uma plasticidade já há muito encontrada nos cosmopolitas que recebem e irradiam influências do lugar onde estão, confundindo-se com a passagem local e prontos pra emergirem em novas culturas. 

 

Um carrinhao de rolimâ adaptado transforma-se em continentes de uma vida errante. O cultivo de um jardim, a presença de um teto e a formação de uma estrutura arquitetônica porosa edificam uma vida que flui. O trabalho fábricas aponta para outro sentido de abrigo. As casinhas estão fixas mas o teto, que protege e torna o lugar seguro, é formado por livros que podem ser manuseados. Apesar de nos acolher e nos trazer a sensação de proteção, o saber impresso nas publicações começa também a ser visto como versões provisórias de apreensão do mundo. O que pode parecer desapego completo e irrestrito que gera em muitos um sentimento de vazio e de vertigem nada mais é do que um chamado para uma adaptabilidade afetiva, generosa, espontânea ao que se apresenta. Nada mais do que uma abertura para a vida.

Entrevista sobre a video instalação Campo Grade na Capela do MAM-BA

Junho, 2010

MAM - Gaio, grande parte de seu trabalho volta os olhos para a relação entre o espaço público, a arquitetura e o homem, neste contexto. “Em sua dissertação de mestrado “Arquitetura Invisível: A ‘Casificação’ do Espaço Urbano pelo Morador de Rua”, você fala do espaço urbano “operado e agenciado pelo morador de rua”. Como as relações humanas interferem e constroem estes “espaços simbólicos”? 

R - Ao meu ver, as relações que se estabelecem na rua ganham uma tensão e um drama mais específicos quando percebidos sob um olhar mais interessado. As feições, a vitalidade e o movimento destas intensidades produzidas pelo corpo, se abrem para uma nova dimensão quando confrontadas com espaço público: ações corriqueiras como comer, brigar, namorar, dormir  etc... traz de volta  esse fluxo do que é vivo e do que é vivido na medida em que o espaço é instrumentalizado para construção dessas interações. O espaço torna-se assim, menos dimensional e mais extrovertido e intensivo, mais volátil e construído não por matéria, mas por intensificações e processos.

 

MAM - Levando-se em conta que os espaços tornam-se lugares através de “uma constelação de relações sociais”, temos, na verdade, arquiteturas provisórias, momentâneas. Qual  “momento” do Campo Grande você está trazendo para a Capela do MAM?

R - Na verdade não há a busca por um momento especifico, o que se vê na praça e sua vizinhança, e isso  está claro nas imagens, é um certo interesse pelo corriqueiro, uma coleção de imagens e de situações vividas e construídas cotidianamente com suas especificidades e diferenças, uma espécie de apropriação e edição da paisagem e das perspectivas que se encontram e se entrelaçam ali e que no espaço expositivo são vistas dentro de um novo contexto do tempo e do espaço.

 

MAM - Nas obras “Camarote” e Campo Grade”, você propõe dois instantes contemplativos para o público. Fale sobre eles e se o espectador, em algum momento, torna-se agente nestas situações? 

R - Eu penso que a apropriação e a reterritorialização desse cenário ou paisagem favorecem, de certa forma,  a uma substituição da experiência puramente física de uma obra pelo uso da corporalidade como um meio de interação entre a percepção física e espacial. Assim a obra atua não somente num campo de ação, mas também no campo da percepção fornecendo alimento visual ao pensamento, aguçando nossas atitudes, ativando nossas memórias, sensações e  associações no campo dos perceptos e afetos. A arte então, passa a operar mais em sintonia com a vida e com a experiência do vivido, numa relação direta entre  arte e vida.

 

MAM - Uma vez que você discute o espaço público, como você vê esta operação de deslocamento deste para o espaço institucional.

R - Eu acho que não há problema algum,  a atitude nesse sentido só reforça a condição não estática que os espaços possuem. Veja o caso do bairro da liberdade em São Paulo. É como se um pedaço do Japão tivesse se descolado de lá pra cá, ou os guetos jamaicanos em Londres, a periferia marroquina e argelina em Paris ou os espaços de imersão do Hélio Oiticica e assim por diante.  Isso só nos mostra que os lugares assim como os  povos são muito mais móveis do que se imagina.  

 

MAM - Uma vez que na produção de arte contemporânea as fronteiras entre linguagens estão " borradas", de que forma você estabelece relações com as diversas expressões artísticas, seus suportes, materiais e meios de ação, na construção de sua poética?

R - Acho que o grande desafio em trabalhar em meios diferentes é encontrar um fio condutor e uma verdade que permeia toda produção, uma continuidade que esteja presente tanto numa escultura quanto num vídeo.

 

MAM - Gaio, você trabalha com o fragmento do Gradil de Carybé e com imagens extraídas da internet. Como se constrói este processo de apropriação, no seu trabalho? 

R -  De forma natural. Essa atitude de apropriação e edição da paisagem e suas intensidades a partir do espaço público nos remonta aos impressionistas e seus processos de apreensão da cena cotidiana. Cito também ao flanêur na Paris do séc XIX e a  ação de percorrer a cidade, experimentando espaços e o movimento das passagens onde se é invadido por sensações e intensificações da vida cotidiana. Tudo isso contribui para a aquisição de novos fluxos experienciais. Adiante, para além da paisagem, Duchamp apropria-se de um mictório introduzindo o objeto trivial do cotitiano na cena estética. Então, na produção de arte atual, essa coisa de citar ou tomar pra si a paisagem do dia a dia e seus objetos é um processo tão natural quanto desenhar.

Navegar (não) é preciso

Paula Alzugaray, 2007

Nos tetos das casinhas de madeira da instalação Fábricas, de Gaio, pairam conceitos e eventos de espectro tão amplo quanto o readymade, o complexo de édipo, a teoria do inconsciente, a morte de deus, a gênese da cultura popular, a crítica ao capitalismo, o fim das ideologias, o paradigma do super-homem. Os livros que conformam os telhados dessas singelas construções fabricadas de pedaços de madeira catados nas ruas, constituem uma bibliografia com os pilares do pensamento moderno e pós-moderno. Mas fiquemos por ora com o conceito de rizoma, elaborado por Gilles Deleuze e Félix Guattari, pelo sentido que ele pode irradiar, a partir dessa instalação específica, Fábricas, para toda a poética da obra de Gaio.

 

Por rizoma, entenda-se, em linhas gerais, uma estrutura em forma de rede, que contém em si princípios como heterogeneidade, movimento, acaso e, especialmente, desterritorialização. O rizoma pode ser subterrâneo e também aéreo. Essa existência variável, que concilia paradoxos, é o que orienta a produção de Gaio.

 

A conjugação território/nomadismo estrutura os carros-casas da série Espaçonaves e também as fotografias da série Negreiros, que fazem uma aproximação entre os atuais cargueiros e petroleiros com os antigos navios negreiros que entravam na Baía de Todos os Santos, carregando a diáspora africana. Ambos os trabalhos referem-se a travessias: do tecnológico ao precário, do nômade ao sedentário, do passado ao presente, do território ao não-lugar, do objeto fixo ao espaço/fluxo. A espaçonave Cidade solta, uma cidade alagada sobre rodas de skate, exposta no Centro Cultural São Paulo, é um desses exercícios de arquitetura de um território em movimento.

 

O rizoma é ainda algo que brota espontânea e sorrateiramente nas brechas dos espaços civilizados. Assim como a planta arquitetônica da casa burguesa perde sua racionalidade, ao ser infiltrada rizomaticamente no tecido urbano. No lento movimento do caracol que carrega o home theatre nas costas, no vídeo Saindo de casa, há um persistente rastejar no sentido de diluir a oposição entre ser nativo e ser estrangeiro. Mesmo que esse movimento possa ser interrompido ou quebrado em algum ponto, o caminho será sempre refeito e traçado em outras linhas de ação.

 

Como mato que cresce nas brechas, assistimos, nas imagens da série Calos, à irrupção de casas-calos nas palmas das mãos. Em qualquer caso, Gaio propõe a arte como um teto, que abrigue a condição-fluxo, sem-teto, sem-terra e sem raíz, do homem urbano.

 

 

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